Pamella Liz Nunes PereiraPostdoc - PPGBIOS/Fiocruz e colaboradora do Epidemic Ethics.Pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Em decorrência da pandemia do COVID-19, o Brasil vem enfrentando o aprofundamento das desigualdades históricas relacionadas a moradia, educação, saúde e alimentação. Durante a crise sanitária, 117 milhões de pessoas – 55% da população do país – passaram por algum tipo de insegurança alimentar e 19 milhões passaram fome. Mesmo diante dessa terrível realidade, o governo brasileiro aboliu o maior programa de transferência de renda do país e o substituiu por um programa que não oferece uma renda básica estável e contínua para pessoas em extrema pobreza.
Desde 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) considera o acesso à higiene menstrual um direito que precisa ser tratado tanto como uma questão de saúde pública quanto de direitos humanos. Dados anteriores à pandemia de COVID-19 mostram que entre os 1,9 bilhão de pessoas no mundo que menstruam, aproximadamente 500 milhões não têm as condições necessárias para manejar o seu ciclo menstrual com saúde e dignidade . Garantir a saúde menstrual implica fornecer a todas as pessoas que menstruam as condições sanitárias mínimas previstas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especificamente os objetivos relacionados à saúde e bem-estar, acesso à água potável e saneamento e alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas. De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), “desigualdade de gênero, pobreza extrema, crises humanitárias e tradições nocivas podem transformar a menstruação em um momento de privação e estigma, o que pode prejudicar o gozo dos direitos humanos fundamentais. Isso vale para mulheres e meninas, bem como para homens transgêneros e pessoas não-binárias que menstruam.
Para garantir a saúde menstrual, países, como Índia e Quênia implementaram iniciativas para garantir que todas as pessoas que menstruam possam gerenciar seu ciclo com dignidade e possam continuar frequentando a escola e outras atividades sociais durante o período menstrual sem constrangimento ou limitações.
No entanto, no Brasil, o presidente vetou recentemente um Projeto de Lei que instaura o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. O Projeto de Lei foi, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, foi vetado unilateralmente pelo Presidente da República. Atualmente, o Congresso Nacional busca derrubar o veto.
O Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual propõe a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para mulheres, meninas, homens trans e pessoas não-binárias, que sejam estudantes de escolas públicas ou que vivam em situação de rua, prisão ou em situação de extrema vulnerabilidade. Os principais objetivos do programa incluem: combater a precariedade menstrual, identificada como a falta de acesso ou falta de recursos para a compra de produtos de higiene e outros recursos necessários durante o período menstrual, e reduzir as faltas escolares durante o período menstrual para minimizar os danos à aprendizagem e ao desempenho escolar. No Brasil, mais de 4 milhões de pessoas que menstruam não têm itens básicos de higiene nas escolas quando estão menstruadas e 713 mil vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em casa.
Ao negar os direitos de mulheres, meninas e pessoas de gênero diverso que menstruam, o governo brasileiro alega que não há recursos e capacidade logística suficientes para a distribuição de produtos menstruais, pois precisa garantir itens essenciais da cesta básica, vacinas e medicamentos, ainda que sejam expressivas as falhas na garantia dessas necessidades. Sobre o assunto, a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos declarou :
“Hoje temos que decidir é a prioridade vacinas ou absorventes? Mulheres pobres sempre menstruaram no Brasil e nenhum governo se preocupou com isso antes. E agora o Bolsonaro é o "carrasco" porque não vai distribuir absorventes este ano? Temos nosso próprio programa de governo e vamos oferecer absorventes na hora certa. Uma questão de prioridade, não vamos tirar o arroz da cesta básica para substituí-lo por absorventes higiênicos.”
Apresentar apenas duas soluções para um problema, quando na realidade existem ou podem existir várias outras, cria uma falsa dicotomia, como no caso das supostas escolhas que o governo brasileiro precisaria fazer entre garantir ou direitos básicos à saúde, ou direitos à higiene, ou segurança alimentar. Com tais alegações, o Governo ignora o fato essencial de que a saúde menstrual, a segurança alimentar e o acesso à saúde são direitos que devem ser garantidos em conjunto. O Governo também reafirmou mais uma vez sua posição contra a equidade de gênero e contra os direitos fundamentais.
Ao invés de uma discussão sobre as necessidades prementes de pessoas em situação precária, que enfrentam a pobreza menstrual em um contexto de vulnerabilidade estrutural, o veto gerou discussões - não baseadas em evidências confiáveis - sobre o custo total e as fontes de financiamento para a distribuição de produtos menstruais. Proponentes do Projeto de Lei afirmam que o financiamento viria do montante que o Governo já destina ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Fundo Penitenciário Nacional. No entanto, o presidente e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos insistiram no veto, com argumentos que não podem ser considerados éticos nem baseados em evidências. Entre os argumentos da ministra está o de que não se pode retirar alimentos da cesta básica para pôr no lugar absorventes higiênicos, e que todo o orçamento do Ministério da Saúde está comprometido com vacinas e medicamentos para o tratamento da COVID-19. No entanto, não há de fato escolha a ser feita entre esses direitos humanos: garantir direitos à segurança alimentar e vacinação não impede a distribuição de produtos menstruais para quem precisa e não pode comprá-los
A pandemia de COVID-19 aprofundou as desigualdades existentes nos países de baixa renda, onde parcelas significativas da população enfrentam insegurança alimentar, dificuldades de acesso aos serviços de saúde e outras falhas em termos de direitos humanos básicos. Em uma emergência de saúde pública, garantir o acesso à saúde é central, e os esforços do governo são amplamente direcionados para o pleno funcionamento dos sistemas de saúde e a aquisição de medicamentos e outros suprimentos essenciais para controlar a propagação de doenças infecciosas. No entanto, a vacina precisa ser acompanhada de outras proteções igualmente necessárias para a sobrevivência digna da população. Nunca devemos perder de vista que a garantia dos direitos humanos deve estar no centro das respostas às emergências de saúde. Recomendamos que o governo brasileiro não hierarquize as necessidades básicas de meninas, mulheres, e homens trans em situação de vulnerabilidade. Em um cenário de recursos limitados, muitas escolhas precisam ser feitas, e os critérios não podem ser apenas econômicos ou baseados em falsas dicotomias, eles devem ser baseados na justiça social, na equidade, na solidariedade e na garantia da integridade corporal e da dignidade humana. Não podemos seguir com argumentações excludentes, uma vez que a nossa realidade já é repleta de desigualdades e de exclusão. Precisamos de absorventes, e vacinas, e comida, e saneamento básico, e muito mais.
Desde a publicação deste blog, o Congresso Nacional brasileiro revogou o veto do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei de combate à pobreza menstrual (PL nº 4.968/19) que garante a distribuição gratuita de absorventes para mulheres, meninas, transgêneros e pessoas não-binárias em situações vulneráveis.
Pamella Liz é Postdoc no PPGBIOS/Fiocruz e colaboradora do Epidemic Ethics. Possui doutorado e mestrado em Saúde Coletiva pelo Instituto Fernandes Figueira - IFF/FIOCRUZ, com período sanduíche na Rutgers University- Newark (NJ-EUA), e graduação em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Bacharelado (2013) e Licenciatura (2016). Atua como pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
http://lattes.cnpq.br/9901709302467476
https://orcid.org/0000-0002-7276-9922
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